Vai aí uma leitura boa para esses dias preguiçosos de Natal:
Acaso
Pouco mais de duzentas casinhas cobertas de palha
preenchiam de tradição a pequena vila na beira do Tocantins. Não existia, por
assim dizer, uma disputa, mas as manhãs e noites de domingo eram divididas.
Uns iam ver o padre, outros iam para a igreja dos crente (ouvir o pastor).
Só tinha um homem alheio a essas reuniões, tão
costumeiras e automáticas, que existiam por existir e, ao que parece, só isso
bastava para os que lotavam a atmosfera de orações.
Mas ele não. Em sua vida solitária não havia espaço para
crenças.
Os religiosos da vila disputavam sua alma. “Que alma? Não
tenho alma”. Fazia questão de dizer. “Sou só um corpo cheio de sangue, ossos,
carne e bofe”.
Não acreditava em rezas nem orações. Nada disso. Apenas nos
remédios que comprava na farmácia da cidade e carregava de barco até chegar à
pequena localidade parada no tempo, no espaço e na fé.
“O que cura é isso aqui: aguardente, Anador, Buscopan.
Não é diabo de reza”.
Ele não chegava a ser assim um “Seu Lunga” da vida. Não
era grosseiro. A não ser quando o assunto era religião. Aí sim: Aí era possível
testemunhar um tom mais agressivo se desatando da boca junto com as palavras.
Morava só e talvez por isso – talvez pelo que pudesse ter
ocorrido no passado – se tornara tão distante de Deus, tão descrente. Era essa uma
boa razão encontrada pelos pescadores da vila para justificar um desapego tão
despreocupado das religiões.
Mas outros afirmavam que ele era revoltado por não ter
conseguido terminar o curso de Medicina. Tudo especulação... Ninguém sabia.
Certa vez um rapaz de 17 anos foi mordido de cobra.
Coitado do Pedrinho. Tão novo; cuida da avó sozinho. A
velhinha vive prostrada numa cama, o dia inteiro tomando remédio na veia, pra
curar o coração fraco que vive querendo parar de bater.
E se ele morrer, quem vai cuidar da velha?
Mas Deus não há de deixar uma desgraça dessas acontecer.
Choveram de orações sobre o rapazinho, que suava e ardia
em febre, soluçando até a alma (esse tinha alma). E, debaixo de tanto apelo, no
final escapou.
“O Pedrinho melhorou! Foi Deus! Foi Deus! Graças a Deus! Graças
a Deus!”. Comemoravam os moradores da vila, tanto crentes quanto católicos,
dançando alegremente na pracinha central, cujas entradas das igrejas se olhavam
e se abriam, mas nunca se engoliam.
“Santa ignorância! Foi o soro antiofídico que eu peguei
lá na cidade, semana passada”. Pensou alto, encostado na porta de sua
farmacinha, enquanto observava a alegria pelo “milagre”.
Alguns dias depois um pau caiu bem na cabeça do Seu
Mazinho. Que jeito? Foi só uma... Morreu na hora.
“Será que Deus não gostava do Seu Mazinho do mesmo tanto
que gostava daquele rapazinho que a cobra mordeu?”. A pergunta saiu espontânea,
mas em tom de deboche para alguns que o ouviam.
Embora católicos e evangélicos não se cheirem em muitas
partes da fé, deram ao ateu a mesma resposta, a mesma resposta oca para quem
procura a razão e não a fé: “Foi feita a vontade de Deus. Se Deus o levou é
porque era chegada sua hora. Os desígnios de Deus transcendem a vontade do
homem...” Enfim, todas aquelas explicações que, para muitos, não servem para
nada.
E quanto mais se passavam os dias, mas suas certezas se
consolidavam.
Assim como o mesmo sol que amolece a manteiga, endurece o
barro, os mesmos acontecimentos que faziam uns crerem com mais fervor o faziam
descrer mais ainda.
Homem de impenetrável coração, via os dias fugirem entre
seus dedos e sumirem nas estrelas que luziam a pequena vila.
Deus, religiões, rezas, orações eram exemplos puros da
ignorância coletiva que permeava a alma dos rasos de mente, que não conseguiam
ver a vida, além das páginas finas da Bíblia e dos limites da vila.
Até que um dia algo aconteceu – e sempre acontece, senão
a vida não teria sentido.
Pedrinho (aquele mesmo da mordida de cobra) entrou
correndo na farmácia. Esbaforido e trêmulo, pediu urgente o diurético pra
aplicar na veia da avó. “Rápido, rápido, se não ela morre”.
O descrente homem olhava para a face amarelada do garoto
e via ao fundo o cavalo apeado, aguardando o retorno urgente.
De imediato, entregou o frasco para o jovem, que nem
pagou. Saiu correndo, montou no cavalo e foi. “Depois eu pago!”
“Vai ligeiro, menino! Pensa nisso não; vai salvar a tua
avó!”.
Virou-se e foi fechar a geladeira onde guardava soros e
diuréticos. Quase caiu de susto. Deu frio na espinha, ficou da cor de uma folha
de papel.
Ao invés de dar o diurético ao rapaz, deu-lhe soro.
Acontece que soro nesses casos é mortal.
O problema da avó do menino – e isso ele sabia bem – era um
edema agudo. As veias do pulmão ficam cheias de sangue, porque o coração não
consegue bombear. E se fosse injetado soro na veia dela, era mais líquido no
corpo. Só piorava tudo. Era sentença de morte.
Terrivelmente assolado pela desgraça certa que ajudara
involuntariamente a acontecer, correu pro meio da rua, mas até onde a vista
alcançou, não achou nem a poeira do cavalo. O diabo da velha morava afastado da
vila uma meia légua.
Telefone não tinha, cavalo ali perto também não. Correr
até lá era que não dava tempo mesmo.
O que fazer?
A quem pedir?
Era domingo de manhã. Nem gente na rua tinha.
Ficou tonto; o desespero esvaziou seu corpo de movimentos
e a cabeça de idéias.
Olhou para o céu e viu um azul cortado por uma bolha de
água salgada presa entre suas pálpebras tremidas; caiu no chão de joelhos.
“Meu Deus! Eu não acredito que você exista, mas se, por
um acaso, você existe mesmo, desça desse pedestal ridículo e me ajude, ajude
essa pobre velhinha. Por favor, meu Deus, se você existe, me prove!”.
No exato momento em que, aos brados, terminava a oração –
a primeira depois de décadas – ouviu o galope do cavalo. Era o moleque
voltando.
“Seu Abraão, me ajuda de novo. O frasco do remédio caiu e
se espatifou nas pedras. Arranja outro aí”.
“Mas que coincidência, rapaz. Tava pensando em você agora mesmo”.