O documentário e os gritos do coronel
Um grave
acontecimento ocorreu no fechamento das expedições do Grupo de Trabalho
Araguaia (GTA), que envolve os Ministérios da Defesa, Justiça e Secretaria de
Direitos Humanos da Presidência da República: a tentativa de agressão de um
oficial-militar, o coronel Cordeiro contra Gilles Gomes, assessor da Ministra
Maria do Rosário e um dos principais coordenadores da missão que tem a
responsabilidade apurar as circunstâncias das mortes, como, também, localizar e
identificar os desaparecidos políticos na Guerrilha do Araguaia.
Em tal
expedição, a quinta e última de 2012, que localizou uma ossada humana,
perfazendo um total de nove achamentos no ano, contou, ainda, com a presença da
incansável Maria Rita Kehl, da Comissão Nacional da Verdade e coordenadora do
Grupo de Trabalho sobre a violação dos direitos humanos dos camponeses e
indígenas.
O estopim
do contencioso ocorreu em função da exibição do documentário "Araguaia -
Campo Sagrado", de Evandro Medeiros, nas dependências do Hotel Itacaiúnas,
em Marabá, local escolhido pelo GTA para realizar os relatórios das missões por
ter um amplo auditório capaz de albergar os representantes ministeriais,
geólogos, médicos legistas, arqueólogos, antropólogos, familiares de
desaparecidos, militares, membros do Ministério Público Federal, representantes
de universidades e instituições de pesquisa, além de ouvidores independentes e
do PC do B.
A película,
cuja narrativa aborda os duros acontecimentos da invasão militar ao sul do Pará
para sufocar o mais importante evento de resistência ao regime dos generais, a Guerrilha
do Araguaia, organizado na clandestinidade pelo Partido Comunista do Brasil
(PCdoB) entre 1972 a 1975, é contundente pelos depoimentos de camponeses,
ex-mateiros e soldados que atuaram naquele episódio.
A
insubmissão araguaiana é conhecida tanto pelo heroísmo dos guerrilheiros como,
também, pela violência desmedida da repressão política contra brasileiros,
sejam militantes políticos que lutavam pelo restabelecimento das liberdades
públicas, seja contra indígenas e camponeses, vítimas quase sempre anônimas no
enredo dos acontecimentos. Houve, seguramente, mais de 350 mortes até a debacle
do movimento comunista. Tais números, mórbidos, excedem em muito a história
contada até aqui.
O filme, de
cinquenta minutos, promove o segundo encontro, agora imagético, das figuras do
ex-mateiro Sinésio Martins, já falecido, e do guerrilheiro-camponês, Jonas. O
primeiro encontro de ambos se deu nas matas fechadas e ali, em 24 de novembro
de 1973, na região do Pau Preto, São Geraldo, é morto o guerrilheiro, o
"Ari". Ambos estavam lá, de armas nas mãos, em lados opostos e, cada
um a sua forma, narram o fato que fora encerrado com o corte de cabeça daquele
insurgente, ainda desaparecido.
Outro
aspecto contundente do documentário é a denúncia do assassinato do ex-mateiro
Raimundo Clarindo do Nascimento, o "Cacaúba", em junho de 2011. Tal
rastejador, um dos mais importantes na caçada militar no Araguaia, silenciou
por mais de trinta anos e apenas em maio daquele ano é que começou a falar o
que sabia. Em fins de junho apareceu morto depois da visita do Major Curió na
Serra Pelada, onde morava. Excluído da reunião dos ex-guias com o antigo chefe,
revelou saber que sua vida estava em risco. Na época denunciei o ocorrido num
artigo, "Relatos de um homem morto".
O inquérito
aberto pela polícia civil paraense concluiu que o "Cacaúba" fora
morto por latrocínio, roubo seguido de morte. Ocorre que aquele homem vivia em
absoluta pobreza e ganhava os poucos tostões vendendo bananas num dos lugares
mais miseráveis do país brasileiro.
Evandro
Medeiros que, além de cineasta é professor do Campus de Marabá da Universidade
Federal do Pará (UFPa), revela a descoberta de uma oração escrita de próprio
punho por Osvaldo Orlando da Costa, o lendário "Osvaldão", e que por
muitíssimos anos foi guardada, em segredo, por uma camponesa em São Geraldo do
Araguaia/Pa. Através de seu filme podemos ver a letra do comandante negro das
matas, verdadeiro herói de nossas liberdades públicas.
O filme,
pulsante, recorta as tradições religiosas da festa do Divino Espírito Santo, na
Serra dos Martírios/Andorinhas, que revela um Brasil culturalmente profundo com
suas ladainhas e bandeiras e, através da narrativa de Euclides Pereira de
Souza, o "Beca", podemos compreender o suplício de milhares de homens
e mulheres atingidos pelos golpistas que assaltaram o poder em 1964.
Mas o que
deve ter incomodado mesmo o oficial-militar fora a fala de um ex-soldado,
Raimundo Melo, da primeira geração de soldados recrutados na própria região do
Tocantins-Araguaia pelo Exército Brasileiro em 1974.
No artigo
"Sobre lobos e meninos" de fins de fevereiro de 2011, assim os
caracterizei: " Passaram suas vidas com os lobos rondando seus telhados,
humanidades e consciências. Um deles sente, por todos os malditos dias, o
sangue de uma cabeça cortada percorrendo suas costas e seus caminhos e quer se
libertar para resgatar toda uma vida que não foi e que nunca poderá ser se não
disser o que sabe, o que viu, o que sente".
O fato é
que Cordeiro, o coronel, invisível até então, equilibrado até então, revelou
uma prática e visão de mundo dos tempos de Garrastazú Médici, que está em
contradição com as forças armadas na democracia. Será que ele acha mesmo que os
ex-soldados, muitos dos quais bestializados pelos superiores terão suas almas
agrilhoadas eternamente aos rigores da caserna?
Esbaforido
e nervoso gritou, no meio da sessão de cinema, orientando grosseiramente que
todos os seus subordinados se retirassem dali para a perplexidade geral do
cineasta, de familiares, técnicos, militares e representantes do governo
federal. Como se não fosse o bastante tão triste espetáculo de intolerância,
ainda tentou agredir fisicamente o representante da SDH, Gilles Gomes. Só não
logrou sucesso pela intervenção do representante do Ministério da Defesa que,
enfim, impediu qualquer ação contra aquele servidor público.
Houve até a
tentativa de suspender a exibição do filme, o que me fez lembrar de "Je
vous salue marie", de Jean Luc Godard, e que contava a história de um
cristo contemporâneo, com dilemas plenamente humanos e atuais. Decididos,
asseguramos a conclusão do documentário e, ao final, explodimos em aplausos.
Será que o
coronel se sentiu desrespeitado pelo fato de que o filme narra o que
verdadeiramente aconteceu no regime militar?
Quero crer
que tal mentalidade, recalcitrante, seja minoritária entre nossos
oficiais-militares e que o ato do coronel, de intimidação, seja exemplarmente
punido e combatido dentro dos quartéis.
Tranquilo e
pedagógico, o cineasta e professor Evandro Medeiros, ao final, conclamou,
todos, a reflexão de que "a igreja católica é muito maior do que as
inquisições da idade das trevas e o Exército é muito maior do que os violentos
da ditadura militar de 1964".
Ali, a seu
modo, com a serenidade que os tempos atuais exigem, deu uma lição aos
brasileiros que lutam para desenvolver nossa dimensão democrática e revelar, de
uma vez por todas, os acontecimentos dos anos-de-chumbo. Só assim estaremos
avançando no progresso espiritual deste imenso povo dos trópicos.
É por isso
que gosto de gente, de inteligência e de cinema de guerrilha.