Sempre que me perguntam por que eu gosto tanto de futebol, eu respondo que não é pelo jogo, é pelas pessoas.
Diego
Armando Maradona é, para mim, o personagem mais interessante da história do
futebol. Viveu em um tempo de transição em que os jogadores começaram a deixar
de ser artistas da bola para serem máquinas de jogar futebol; um tempo em que a
força física e o compromisso tático começaram a compor o perfil dos jogadores
até torna-los no que são hoje: atletas profissionais. Maradona aceitou esse
desafio, “pero sin perder la ternura jamás” e foi além: fez do campo de jogo sua
área de atuação política e social.
Na
Copa do Mundo de 1986, Dieguito marcou dois gols antológicos no mesmo jogo
diante da Inglaterra, um deles com a mão. Anos depois, ao ser perguntado sobre
o lance, ele deu a resposta que só um gênio como ele poderia dar: “Sí, ese gol
entró con la mano, pero con la mano de Dios” (Sim, esse gol entrou com a mão,
mas com a mão de Deus).
A
Argentina foi campeã do mundo naquele ano, mas o jogo mais comemorado foi
aquele contra a Inglaterra e eu não conseguia entender por quê. Só fui compreender
algum tempo depois que nos anos 80 Argentina e Inglaterra travavam uma guerra
pelo controle da Ilha das Malvinas. Até hoje, os ingleses controlam o
arquipélago, mas naquele 22 de junho de 1986, os argentinos derrotaram os
britânicos... com “la mano de Dios”.
Com
essa noção de pertencimento, esse empoderamento típico de los hermanos, esse auto-reconhecimento,
Maradona mostrava para o mundo que ele não era apenas um jogador de futebol,
mas o ídolo de uma nação, alguém inteiramente conectado com sua gente.
Maradona
é tão unânime que nem mesmo seu envolvimento com drogas e vício por álcool, que
costumam gerar reprovação social, foram capazes de abalar sua imagem. Pelo contrário: suas
crises, suas fraquezas, mostravam para todos que o ser humano é falho, que o
fracasso é um componente na formação das pessoas; mostravam ainda mais: que
vícios não são um desvio de caráter.
No
dia 3 de abril de 2005, enquanto eu passeava por La Boca, periferia de Buenos Aires,
me deparei com várias homenagens a Maradona, uma delas me chamou atenção em
especial: havia um banner com um desenho de Dieguito com a seguinte legenda: “Como
vós solo Dios” (Como você só Deus). Isso resume tudo. Só tem um motivo para eu
me lembrar exatamente da data: era o dia do centenário do Boca Juniors; não era
uma festa comum, era um verdadeiro culto a um Deus.
Aliás,
Maradona é o único jogador de futebol que tem uma religião própria, onde ele é adorado.
Isso é algo tão grande que é difícil de mensurar. Nem Pelé, o rei do futebol,
goza desse prestígio. Talvez porque Pelé seja “apenas” o rei, enquanto Maradona
é “Deus”.
Maradona
viveu o futebol raiz, se envolveu com os problemas sociais, se entranhou no
cotidiano do povo argentino, se tornou mais que uma pessoa, mais que um
artista, Maradona encantou-se, virou história viva; deixou esse mundo cedo
demais. Mas talvez o mundo do futebol, por vezes tão sujo e excludente, não mereça mesmo a
presença de Maradona.
Azar do futebol, sorte a dele, que finalmente pôde tocar em “la mano de Dios”.
(Chagas Filho)