Não
é sempre, mas algumas vezes um jogo de futebol funciona como uma representação
da sociedade, uma encenação orgânica da vida, com seus heróis, seus vilões,
conflitos de valores, derrotas, superações, frustrações... Assim foi Flamengo
4x3 Bahia na noite de domingo (20), pelo Brasileirão 2020.
O
Flamengo jogou com um a menos durante 91 minutos (mais que o tempo
regulamentar) e, mesmo assim, fez 2x0. Já o Bahia, que vive um inferno astral,
conseguiu se superar e virar a partida em apenas 14 minutos do 2º tempo. E
quando tudo parecia estar resolvido, o Flamengo empata e vira de novo com um
gol improvável do atleta mais odiado pelos torcedores: Vitinho.
Vale
destacar que o jogador expulso do Flamengo não foi qualquer um: foi Gabigol. É
certo que o atacante não vive uma grande fase, mas será que alguém já esqueceu
o que ele fez no ano passado? A expulsão por xingar o juiz (coisa que Gabi nega)
ocorreu antes dos 10 primeiros minutos de peleja.
Enfim,
só esses ingredientes já seriam suficientes para falar apenas de futebol aos
amantes da bola. Mas não foi só isso. Teve mais, teve muito mais. O meia
Gerson, do Flamengo, denunciou que o outro meia, Índio Ramirez, do Bahia, lhe
dirigiu a seguinte frase: “Cala a boca, negro!”.
Apesar
dos comentários racistas dos “especialistas” de rede social, essa frase não é
uma mera constatação do óbvio, pois Gerson é negro, de fato. Pelo contrário:
dizer isso é afirmar ao ser humano negro que ele é um cidadão de segunda classe
e não tem direito a fala, justamente por ser o que é: negro.
O
atleta se posicionou, danou-se, correu de um lado para o outro em busca de uma
autoridade que pudesse leva-lo a sério. Mas o juiz da partida, que foi capaz de
ouvir o xingamento de Gabigol, de costas, a mais de 10 metros de distância,
ficou mouco na alegada ofensa racista, mesmo estando quase ao lado do acusado.
Pior
nem foi isso, pior foi Gerson procurar apoio no treinador do agressor (Mano
Menezes), como quem pedia ajuda, e este ironizar a acusação e ainda dizer que o
flamenguista estava de “malandragem”.
O
lado bom da história (para os flamenguistas) é que todo esse clima serviu de
combustível para Gerson, que extraiu uma “beleza colateral” de toda essa doença
chamada racismo. Ele jogou como nunca, contagiou os companheiros e conduziu o
Flamengo a uma vitória memorável.
Depois
que o jogo acabou, ao desabafar sobre o que ocorreu, ao tocar no assunto, ao
meter o dedo na ferida, Gerson conquistou mais uma vitória, que vale muito mais
do que três pontos. Para muitos, vale a luta de uma vida. (Chagas Filho)