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quarta-feira, 9 de junho de 2021

Ao coisificar a natureza, coisifica-se o homem



Por Chagas Filho


A conexão do sujeito com natureza tem se convertido numa relação de domínio do primeiro sobre o segundo ente, conferindo caráter mercadológico (ou mercantil) para cada um dos elementos naturais, numa relação que, praticamente, ganha status jurídico, posto que “para o esclarecimento, aquilo que não se reduz a números e, por fim, ao uno, passa a ser ilusão”. (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 23). Hoje vamos falar sobre os impactos ambientais históricos sobre a natureza, que deveria colocar o homem numa condição de “superioridade” sobre o meio ambiente, mas, pelo contrário, o reduz a mercadoria também.

Quando os chamados “recursos naturais” sofrem esvaziamento de suas significações, para serem apenas uma mercadoria, aniquila-se o caráter cultural da natureza, como fonte de subsistência e aglutinação de vivências, de formação de povoados e de abrigo para práticas culturais e sociais.

Essa relação de dominação do sujeito sobre a natureza remove todos esses significados. O solo, as árvores, a água, têm suas múltiplas dimensões e interpretações esvaziadas de sentido, transformando-se naquilo que não são: uma ferramenta, um produto, um dispositivo de circulação de mercadorias, que têm a função de produzir outras mercadorias que simbolizam bem-estar na modernidade para o sujeito; ou passam a ser ainda a fonte de energia para construir essas mercadorias. Trata-se aqui de um exemplo clássico da escolha iluminista, que, historicamente, vem aprisionando as relações sociais numa equação matemática.

Há que se destacar aqui que essa mercantilização da natureza só faz sentido porque existe um fetiche sobre esse modelo de sociedade esclarecida, afinal como pode uma mercadoria ter valor se não existir sobre ela alguma espécie de encanto? Algum poder estético de atração? O que se pode responder sobre isso é que o encantamento da sociedade moderna, que instrumentaliza a utilização dos componentes naturais, é justamente o desencantamento produzido pelo esclarecimento, cuja missão seria a de emancipar o sujeito da barbárie, mas, segundo Rouanet (1987, p. 206), “acabou por decretar a irracionalidade da emancipação”, transformando-se meramente em razão instrumental, encerrando as potencialidades sociais à mera técnica, impotente diante da necessidade de libertar o homem de sua menoridade.

Nesse cenário, de instrumentalização social, a natureza precisa ser vista como algo a ser posto em funcionamento para o atendimento das necessidades de consumo, que produzem bem-estar e que negam a escuridão derrotada pelo esclarecimento.

Nesse contexto, o homem se torna um sujeito genérico. Perde-se o sentido de humanidade. A partir disso, o sujeito adentra no campo da alienação individual relativa à sua própria produção, que o leva a se alienar dos outros indivíduos também, já que os homens só se encontram para produzir e cada um em sua categoria de produção. A consciência livre é aprisionada no processo: separa-se os produtos próprios do trabalho, o trabalho do homem, da sua capacidade de ser humano.

O fetiche sobre a natureza certamente repousa em considerar que o trabalho humano realizado nessa esteira tem significado objetivo para o desenvolvimento de todos os envolvidos na própria natureza, mas em vez disso a natureza passa a ser apenas uma promessa que irá cada vez mais explorar as forças de trabalho daqueles envolvidos na produção das mercadorias, fazendo-os crer que este modo de vida é o novo sentido de humanidade.

Trata-se da produção de signos que projetam verdades inscritas na pseudo-individualidade do sujeito, na construção de um cenário de “falsa consciência esclarecida”, como definiu Sloterdijk apud Eagleton (1997, p.46). Desse modo, o fetiche produz uma sujeição que se vende como emancipação, conforme explicam Adorno e Horkheimer (1985, p. 156): “Todos são livres para dançar e para se divertir do mesmo modo que, desde a neutralização histórica da religião, são livres para entrar em qualquer uma das inúmeras seitas. Mas a liberdade de escolha da ideologia, que reflete sempre a coerção econômica, revela-se em todos os setores como a liberdade de escolher o que é sempre a mesma coisa”.

Assim, aprisionado no esquematismo da razão instrumental, o sujeito também aprisiona a natureza no mesmo habitáculo social em que está confinado. Ao mesmo tempo em que está reificado, reifica também a natureza, acreditando que a escolha de submeter a natureza ao seu eu, ao invés de submeter-se a ela, tratará um horizonte de prosperidade, de qualidade de vida, mas se trata aí de uma qualidade racionalizada, que nada mais é do que a quantidade de mercadorias que ele pode acumular.

Conceitos e nomenclaturas

A alienação e a fetichização em torno da utilização do meio ambiente reificam o homem a ponto de novas nomenclaturas surgirem. Não é mais um rio, por exemplo, agora se chama hidrovia, que passa a ser, na verdade, uma esteira de commodities, abstraindo-se os outros componentes que formam sua paisagem, como a floresta, o rio dos pescadores, biologia, ictiológica etc., tudo mais é turismo, desfigura-se o rio, da mesma forma em que se desfigura o trabalhador, cuja vivência está inscrita nesse território, conforme explica Lucáks (1989, p. 102), ao dizer que “esta mercantilização racional transforma até a alma do trabalhador: até as suas propriedades psicológicas são separadas do conjunto de sua personalidade e objetivadas em relação a esta para poderem ser integradas em sistemas racionais especiais e reduzidas ao conceito calculador”.

Desse modo, o que se vê é que quanto mais autônoma é a racionalização dos processos de produção, menos autônomo é o sujeito que integra este processo, já que não consegue mais alcançar a totalidade do seu trabalho, da sua função, de modo que se fragmenta enquanto indivíduo e fica mais distante da sua própria individualidade.

A partir dessa subsunção da natureza e do próprio sujeito ao esclarecimento racionalizado é que “o horizonte sombrio do mito é aclarado pelo sol da razão calculadora, sob cujos raios gelados amadurece a sementeira da nova barbárie”. (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 43). Trata-se da confirmação de que o homem subjugou a natureza em nome de salvar a ele e a ela própria, como quem aprisiona o canto de um pássaro, condicionando essa melodia, em troca de água e comida, coisas que o animal em seu estado natural sempre foi capaz de conseguir.

Adorno e Horkheimer se posicionam ainda mais claramente sobre isso: “Para a civilização, a vida no estado natural puro, a vida animal e vegetativa, constituía o perigo absoluto. Um após outro, os comportamentos mimético, mítico e metafísico foram considerados como eras superadas, de tal sorte que a ideia de recair neles estava associada ao pavor de que o eu revertesse à mera natureza, da qual havia se alienado com esforço indizível e que por isso mesmo infundia nele indizível terror” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 156).

O que é o esclarecimento?

É justamente esta civilização esclarecida que vislumbra em cada elemento natural a possibilidade de aferir recursos monetários, para, supostamente gerar progresso aos sujeitos, a partir do impacto sobre esta mesma natureza, porque o acúmulo de bens materiais é uma das características da sociedade moderna: o emprego e a renda são agora os elementos estruturantes de um processo de barbárie naturalizada, que só se consolida de maneira concreta quando alguém toma posse de um bem natural, quando um grupo de pessoas, tendo nas mãos a propriedade dos meios de produção, determina que um elemento natural é um elemento gerador de empregos, de recursos, de impostos; e isso produz sentido para aqueles que carregam em suas mãos apenas a força de trabalho. Nesse momento, as individualidades são subsumidas e a única escolha que realmente importa é dizer quem está contra e quem está a favor do progresso. Há os que receberão o uniforme da fábrica e há os que estarão na sarjeta.

Inconscientemente os sujeitos se encaixam na filiação ideológica pautada na promessa de emprego, elevando-o à condição de fazê-los escapar da pobreza material, mas que irá consumir longos anos de sua vida, pois o funcionamento do emprego vai mostrar – ao longo da história – que o sujeito nada mais é do que uma peça descartável. Escravizado num sistema que ele mesmo ajudou a construir, ele entrega, adiantadamente, sua força de trabalho para, depois de alguns dias, receber um salário que vale menos do que seu valor empregado.

O mais frustrante é que contra esse sistema de troca entre força de trabalho e recursos monetários, o sujeito nada pode fazer, a não ser atestar sua incapacidade, por estar na absoluta escuridão que se tornou sua busca pelo esclarecimento. Tornou-se o elo mais frágil dessa cadeia porque foi reduzido à condição de um mero recurso que está a serviço de algo maior, o mercado. Está enredado na antítese de sua tese, sem que o tal esclarecimento tenha lhe propiciado condições de emancipação para produzir uma síntese a partir desta encruzilhada em que se colocou.

“Para ler o Pato Donald”

Valendo-nos de uma interpretação crítica feita sobre a alegoria dos quadrinhos de Walt Disney, como forma de expressar o que se passa dentro do discurso que é reproduzido por este espiral de contradições no qual está enlaçado o sujeito, pode-se dizer que o trabalhador, neste cenário, está encerrado à figura do Pato Donald, que, conforme Dorfman; Mattelart (1971, p. 101), “representa bastardamente todos os trabalhadores que devem imitar sua submissão”, e aí os autores entram no conceito de “fantasmagoria”, cunhado por Marx (1996), que tenta explicar o resultado de processos de reificação do sujeito, como é este em torno da aceitação da instrumentalização do rio pelo capital transnacional: “O pato não é a fantasia, mas a fantasmagoria de que falava Marx: por detrás do ‘trabalho’ de Donald é impossível que aflorem as bases que desdizem a mitologia laboral dos proprietários, isto é, a divisão entre o valor da força de trabalho e o trabalho criador de valores. O trabalho gasto na produção não existe em Donald. Donald, em seu sofrimento e compensação fantasmagóricos, representa o dominado (o mistificado) e paradoxalmente vive sua vida como o dominante (o mistificador). (DORFMAN;

MATTELART, 1971, p. 101).

Desse modo, não é pueril afirmar que neste particular, assim como a fantasia é instrumentalizada por Disney para converter a sordidez do trabalho violento em doce aventura infantil, uma espécie de purgatório que vislumbra o paraíso do ócio, o encarceramento do trabalhador que agora está a serviço dos mecanismos que também aprisionaram o rio a um outro formato, é uma estrada tortuosa que vai lhe garantir, em breve futuro, uma grande quantidade de bens materiais que vão advir desse mecanismo de subsunção de sua vivência anterior. Por fim, da mesma forma que, em Disney (DORFMAN; MATTELART, 1971, P. 102), “a inocência encobre a perversidade indigna do sistema e o prêmio providencial reassegura à vítima que não deve questionar nem corroer os fundamentos de sua própria desgraça”, no progresso proposto a partir do regime de conversão do meio ambiente a um recurso natural, o trabalhador é parte – dolorosamente alienado, mas ao mesmo tempo anestesiado – de um sistema de premiação monetária, mas ilusória de um futuro promissor não apenas para ele, mas para a massa da qual faz parte.

 

 

Referências bibliográficas:

 

DORFMAN, Ariel e Mattelar, Armand. Para ler o Pato Donald: comunicação de massa e colonialismo. Paz e Terra 2ª edição, 1973.

 

EAGLETON, Terry. Ideologia. Uma Introdução. São Paulo (SP), Unesp, Boitempo, 1997.

 

HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro (RJ), Jorge Zahar, 1985.

 

LUKÁCS, G. História e consciência de classe: estudos de dialética marxista. Trad. Telma Costa; Revisão Manuel A. Resende e Carlos Cruz – 2° Edição, Rio de Janeiro: Elfos Ed.; Porto, Portugal, Publicações Escorpião, 1989.

 

ROUANET, Paulo. As Razões do Iluminismo. São Paulo (SP), Companhia das Letras, 1987.