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quarta-feira, 25 de novembro de 2020

Maradona: “Como vós solo Dios”


Sempre que me perguntam por que eu gosto tanto de futebol, eu respondo que não é pelo jogo, é pelas pessoas.

Diego Armando Maradona é, para mim, o personagem mais interessante da história do futebol. Viveu em um tempo de transição em que os jogadores começaram a deixar de ser artistas da bola para serem máquinas de jogar futebol; um tempo em que a força física e o compromisso tático começaram a compor o perfil dos jogadores até torna-los no que são hoje: atletas profissionais. Maradona aceitou esse desafio, “pero sin perder la ternura jamás” e foi além: fez do campo de jogo sua área de atuação política e social.

Na Copa do Mundo de 1986, Dieguito marcou dois gols antológicos no mesmo jogo diante da Inglaterra, um deles com a mão. Anos depois, ao ser perguntado sobre o lance, ele deu a resposta que só um gênio como ele poderia dar: “Sí, ese gol entró con la mano, pero con la mano de Dios” (Sim, esse gol entrou com a mão, mas com a mão de Deus).

A Argentina foi campeã do mundo naquele ano, mas o jogo mais comemorado foi aquele contra a Inglaterra e eu não conseguia entender por quê. Só fui compreender algum tempo depois que nos anos 80 Argentina e Inglaterra travavam uma guerra pelo controle da Ilha das Malvinas. Até hoje, os ingleses controlam o arquipélago, mas naquele 22 de junho de 1986, os argentinos derrotaram os britânicos... com “la mano de Dios”.

Com essa noção de pertencimento, esse empoderamento típico de los hermanos, esse auto-reconhecimento, Maradona mostrava para o mundo que ele não era apenas um jogador de futebol, mas o ídolo de uma nação, alguém inteiramente conectado com sua gente.

Maradona é tão unânime que nem mesmo seu envolvimento com drogas e vício por álcool, que costumam gerar reprovação social, foram capazes de abalar sua imagem. Pelo contrário: suas crises, suas fraquezas, mostravam para todos que o ser humano é falho, que o fracasso é um componente na formação das pessoas; mostravam ainda mais: que vícios não são um desvio de caráter.

No dia 3 de abril de 2005, enquanto eu passeava por La Boca, periferia de Buenos Aires, me deparei com várias homenagens a Maradona, uma delas me chamou atenção em especial: havia um banner com um desenho de Dieguito com a seguinte legenda: “Como vós solo Dios” (Como você só Deus). Isso resume tudo. Só tem um motivo para eu me lembrar exatamente da data: era o dia do centenário do Boca Juniors; não era uma festa comum, era um verdadeiro culto a um Deus.

Aliás, Maradona é o único jogador de futebol que tem uma religião própria, onde ele é adorado. Isso é algo tão grande que é difícil de mensurar. Nem Pelé, o rei do futebol, goza desse prestígio. Talvez porque Pelé seja “apenas” o rei, enquanto Maradona é “Deus”.

Maradona viveu o futebol raiz, se envolveu com os problemas sociais, se entranhou no cotidiano do povo argentino, se tornou mais que uma pessoa, mais que um artista, Maradona encantou-se, virou história viva; deixou esse mundo cedo demais. Mas talvez o mundo do futebol, por vezes tão sujo e excludente, não mereça mesmo a presença de Maradona.

Azar do futebol, sorte a dele, que finalmente pôde tocar em “la mano de Dios”.

(Chagas Filho)